novembro 15, 2004

Contributo para a discussão das hortas sociais

«Em primeiro lugar, a sociedade civil portuguesa é rica em tecnologias familiares, tanto materiais como simbólicas, e em formas de sociabilidade face-a-face baseadas sobretudo no parentesco e na vizinhança. (...) [A] sociedade civil portuguesa é fraca, isto é, atomizada e fragmentada, se a julgarmos apenas pelos padrões e formas de organização dominantes nos países centrais. Pode, ao invés, conceber-se que as sociedades civis dos países centrais são fracas, quando julgadas segundo os padrões e as formas de organização em que a sociedade portuguesa é forte. É fácil construir o contra-argumento de que se trata de arcaísmos pré-modernos, tradicionais e retrógrados, não admirando por isso que tenham figurado entre os créditos da contabilidade salazarista. Admitindo que nem sempre é fácil distinguir uma posição retrógrada de uma posição progressista (ao contrário do que pensam os dogmáticos das várias cores), há procedimentos analíticos e critérios políticos que podem ajudar à distinção. Tomemos, por exemplo, o caso da pequena agricultura familiar ainda importante entre nós e dita ineficiente, retrógrada e condenada ao lixo da história pelos adeptos da modernização, agora entrincheirados no poder. Sem dúvida que é retrógrada, pelo menos, em dois pontos: em primeiro lugar, representa dominantemente uma estratégia de sobrevivência, que raramente chega para atingir um nível de vida decente; em segundo lugar, é uma organização social particularmente dominada pelo poder do patriarcado e, portanto, pela desigualdade sexual e pela exploração do trabalho infantil.
Seria, no entanto, concebível que a pequena agricultura familiar fosse reinventada, a partir da que existe, e de modo não só a neutralizar a sua negatividade - transformando-a numa estratégia de afluência e de qualidade de vida e democratizando as suas práticas produtivas e reprodutivas - mas também a maximizar a sua potencial positividade: uma vida activa e diversificada, conduzindo em parte ao ar livre e em comunhão com a natureza, uma ideologia de produção baseada no socialmente útil e não no lucro e garantida contra os excessos de produção e de produtividade. Para que se não pense que se trata de imaginação solipsista, vem a propósito mencionar a recente curiosidade dos deputados do Partido dos Verdes no Parlamento Europeu pela pequena agricultura portuguesa, vendo nela alguns traços do modelo de agricultura por eles defendido no seu projecto de reforma agrária europeia. Segundo eles, as vantagens reconhecidas na pequena agricultura portuguesa são precisamente as seguintes: permitir uma melhor qualidade de vida pelo equilíbrio que proporciona entre trabalho urbano e trabalho rural, ajudar a fixar a população nos campos e impedir a congestão das cidades, não destruindo o meio ambiente e produzir equilibradamente evitando o problema dos excedentes.»
(SANTOS, Boaventura de Sousa (1994), Pela mão de Alice - O social e o político na pós-modernidade, Porto: Afrontamento)

2 Comentários:

às 2:44 da tarde, Blogger Carlos Araújo Alves escreveu...

Belíssimo contributo este que nos envias, Padro Gomes Sanches. Uma transcrição de um texto do Boaventura Sousa Santos que, entra aqui na Proposta do Francisco que nem ginjas, enriquecendo, em muito, este Torre.
Bravo Pedro e força Francisco.

 
às 10:45 da manhã, Blogger Pedro Gomes Sanches escreveu...

Esta proposta, das hortas, foi repetida à exaustão, ao longo dos anos, pelo Gonçalo Ribeiro Telles, para a cidade de Lisboa. Para das vantagens sociais já aqui apresentadas, há ainda as que se prendem com o ordenamento do território e com a permeabilização dos solos junto às cidades.

 

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